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Nei Lopes

O juiz Eugenio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, rejeitou a retirada da internet de 15 vídeos contra o candomblé e a umbanda, alegando que os cultos afro-brasileiros “não constituem religião”, pois não se baseiam em apenas um livro nem têm apenas um Deus. Os vídeos foram postados por representantes de igrejas evangélicas. No artigo abaixo, o escritor Nei Lopes explica os fundamentos dos cultos de origem africana e seu caráter religioso.

Ritual de iniciação das filhas-de-santo. Bahia, Brasil, 1951. Fotografia de José Medeiros/Acervo IMS

 

Em junho de 1993, a Suprema Corte dos Estados Unidos garantiu aos praticantes de cultos de origem africana o direito de sacrificar animais em suas cerimônias religiosas. Esse relevante fato histórico deveu-se, certamente, à articulação das casas de culto de origem cubana estabelecidas no país a partir da década de 1950, as quais na década de 1970 já tinham, entre si, a Church of The Lukumi Babalu Ayé, a qual se propunha, quando de sua fundação, a ter sede, escola, centro cultural e museu, para sua comunidade e público em geral. Na contramão de conquistas como essa, no Brasil atual chega-se a negar aos cultos afro-originados até mesmo a condição de religiões.

Filosofia. Em 1949 era publicado em Paris o livro La philosophie bantoue, obra em que o padre Placide Tempels dava a conhecer o resultado de suas pesquisas de campo realizadas no então Congo Belga. Contrariando toda uma concepção preconceituosamente negativa a respeito do pensamento dos povos africanos, o livro revelava a existência, entre os pesquisados, de uma filosofia baseada na hierarquia das forças vitais do Universo, a partir de uma Força Superior. Assim, quanto aos seres humanos, aprendia o missionário, entre outros postulados, que todo ser humano constitui um elo vivo na cadeia das forças vitais: um elo ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando, abaixo de si, a linhagem de sua descendência. Consoante esses princípios, todos os seres, vivos ou mortos, se inter-relacionam e influenciam. E a influência da ação de forças tendentes a diminuir a energia vital se neutraliza através de práticas que façam interagir harmonicamente todas as forças criadas e postas à disposição do homem pela Força Suprema.

Meio século depois, outro missionário, o padre espanhol Raúl Ruiz Altuna, pesquisando a partir de Angola, conseguia estabelecer outra hierarquia, traduzida nos seguintes ensinamentos:

Força Suprema reconhecida pelo pensamento africano corresponde ao Ser Supremo das religiões monoteístas. Criador do universo e fonte da vida, esse Serinfunde respeito e temor. Mas é tão infinitamente superior e distante que não é cultuado, ou seja: não pode nem precisa ser agradado com preces nem oferendas. Abaixo desse Ser situam-se, no sistema, seres imateriais livres e dotados de inteligência, os quais podem ser gênios ou espíritos.

Os gênios são seres sem forma humana, protetores e guardiões de indivíduos, comunidades e lugares, podendo temporariamente habitar nos lugares e comunidades que guardam, e também no corpo das pessoas que protegem. Já os espíritos são almas de pessoas que tiveram vida terrena e, por isso, são imaginados com forma humana. Podem ser almas de antigos chefes e heróis, ancestrais ilustres e remotos da comunidade, ou antepassados próximos de uma família.

Ao contrário do Ser Supremo, gênios e espíritos precisam ser cultuados, para que, felizes e satisfeitos, garantam aos vivos saúde, paz, estabilidade e desenvolvimento. Pois é deles, também, a incumbência de levar até o Deus supremo as grandes questões dos seres humanos. Assim, já que contribuem também para a ordem doUniverso, eles devem sempre ser lembrados, acarinhados e satisfeitos, através de práticas especiais. Essas práticas, que representam um culto em si, podem, quando simples, ser realizadas pelo próprio interessado. Mas, quando complexas, devem ser orientadas e dirigidas por um chefe de culto, um sacerdote.

Dentro dessas linhas gerais, segundo entendemos, foi que se desenvolveu a religiosidade africana no Brasil e nas Américas.

Relevância. Os estudos dos padres Tempels e Altura desenvolveram-se entre povos do grupo Banto, do centro-sudoeste africano. Mas outros estudos, inclusive de sábios e cientistas nativos, nos deram conta de que, embora as religiões negro-africanas tenham suas peculiaridades, todas elas comungam de uma ideia central, a da inter-relação entre as forças vitais, sendo vivenciadas segundo princípios comuns.

Por conta dessas formulações, em 1950, no texto Philosophie et religion des noirs(revista Présence Africaine, nº especial 8-9), o antropólogo francês Marcel Griauleprimeiro indagava se seria possível aplicar as denominações “filosofia” e “religião” à vida interior, ao sistema de mundo, às relações com o invisível e ao comportamento dos negros. Perguntava-se, ainda, sobre a existência de uma filosofia negra distinta da religião e de uma religião independente, de uma metafísica, enfim.

Ao final de sua indagação, o cientista afirmava a existência de uma verdadeiraontologia (parte da filosofia que estuda a existência) negro-africana, concluindo pela antiguidade do pensamento nativo, nivelando algumas de suas vertentes a concepções filosóficas asiáticas e da Antiguidade greco-romana; e ressaltando a necessidade e a importância do estudo desse pensamento. Quatro décadas depois, o já citado Altuna, fazendo eco a Griaule, afirmava: “Basta debruçarmo-nos sobre esse conjunto de crenças e cultos para encontrar uma estrutura religiosa firme e digna”.

Definição. O termo “religião”, segundo N. Birbaum, referido no Dicionário de Ciências Sociais publicado pela Fundação Getúlio Vargas, em 1986, define um conjunto de crença, prática e organização sistematizadas, compreendendo uma ideia que se manifesta no comportamento dos seguidores. Daí aferimos que toda religião se define, em princípio, por um culto prestado a uma ou mais divindades; pela crença no poder desses seres ou forças cultuados; e em uma liturgia, expressa no comportamento ritual; e finalmente pela existência de uma hierarquia sacerdotal.

Pelo menos desde meados do século XIX, as religiões chegadas da África ao Brasil, apesar de todas as condições adversas, conseguiram recriar, no novo ambiente, as crenças e as práticas rituais de sua tradição ancestral, dentro dos princípios científicos que definem o que seja religião.

Na própria África já se distinguia, por exemplo, o feiticeiro (ndoki, entre os bantos), agente de malefícios, do ritualista (mbanda ou nganga), manipulador das forças vitais em benefício da saúde, do bem-estar e do equilíbrio social de sua comunidade. E noBrasil, como em outros países das Américas, as diversas vertentes de culto chegaram a tal nível de organização que constituíram, de modo geral, categorias sacerdotais altamente especializadas. Por exemplo, no candombléum babalorixá(“pai daquele que tem orixá”, e não “pai de santo”, como se traduziu derrogatoriamente) não tem a mesma função de um “babalaô” (“pai do segredo”), responsável por interpretar as determinações do oráculo Ifá. Uma equede(sacerdotisa que atende os orixás quando incorporados) não tem as mesmas funções de uma iá-tebexê (a responsável pelos cânticos rituais). Da mesma forma que umaxogum (sacrificador ritual) não tem as mesmas funções de um alabê (músico litúrgico), por exemplo.

As religiões de matriz africana no Brasil, em suas várias vertentes, praticam uma liturgia complexa, que compreendem rituais privados e públicos. Nas práticas privadas, todo ritual se inicia pela invocação nominal dos ancestrais, remotos e próximos, dos fundadores do templo, em listas tão mais longas quanto mais antigo for o“fundamento” da casa. Nas festas públicas, notadamente no chamado candomblé jeje-nagô, oriundo da região africana do Golfo do Benin, as divindades (orixás ou voduns) se manifestam numa ordem rigorosamente obedecida, da primeira à última a entrar na roda das danças. E por aí vamos.

Constitucionalidade. Não é o monoteísmo que caracteriza uma religião. Se assim fosse, as religiões orientais como o hinduismo, o taoísmo etc. não seriam como tal consideradas. Muito menos o é a circunstância de as práticas religiosas serem ou não baseadas em textos escritos. A propósito, o historiador nigeriano I.A. Akinjogbin, em artigo na coletânea Le concept de pouvoir em Afrique (Paris, Unesco, 1981), assim se manifestou: “O conhecimento livresco tem um valor formal e importado, enquanto o saber informal é adquirido pela experiência direta ou indireta. Os conhecimentos livrescos não conferem sabedoria (…) O ensinamento tradicional deve estar unido à experiência e integrado à vida, até porque há coisas que não podem ser explicadas, apenas experimentadas e vividas”.

Vejamos, em conclusão, que toda a tradição africana de culto aos orixás, da qual noBrasil se originaram principalmente o candomblé da Bahia (nagô e jeje), o xangô pernambucano, o batuque gaúcho e a umbanda fluminense, tem uma base filosófica. Esse fundamento é, em essência, o vasto conhecimento que emana da tradição iorubana de Ifá, o oráculo que tudo determina, em todos os momentos da vida de uma pessoa, de uma família, de uma cidade, de uma nação etc. Da tradição de Ifá é que vêm, por exemplo, a origem dos orixás, sua mitologia, suas predileções, suas cores etc. O popular jogo de búzios é uma forma simplificada de consulta ao oráculo.

Esse corpo de doutrina, compreendendo muitos milhares de parábolas, foi transmitido de geração a geração entre os antigos babalaôs, na África e nas Américas. E nos tempos atuais, embora não unificado, já começa a ter circulação inclusive na internet.

Pois essa tradição remonta a muitos séculos; e sua história se conta a partir do momento em que Oduduá, o grande ancestral dos iorubás, cuja presença histórica, no século XII d.C., é atestada cientificamente (cf. A. F. Ryder, História Geral da África, Unesco/MEC/UFScar, vol. IV, 2010, p. 389), após fundar a antiga cidade deIfé, enviou seus diversos filhos em várias direções, para fundar cada um o seu reino.

Mas esta é apenas uma parte da alentada e sábia tradição religiosa que os antigos africanos legaram ao Brasil. A qual, como um todo, goza da proteção constitucional do artigo 5º da Constituição Federal, bem como daquela assim enunciada: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215, parágrafo 1º).

Nei Lopes é autor de, entre outros livros, Kitábu, o livro do saber e do espírito negro-africanos (Ed. Senac-Rio, 2005).

 

Matéria originalmente publicada em: http://neilopes.com.br

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O ministro da Cultura e o presidente da Palmares participam da celebração

Foram realizadas de 30 de julho a 1º de agosto últimos as atividades comemorativas do centenário de um dos mais tradicionais templos de religião de matriz africana no Brasil: o terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Comandado pela Yalorixá Stella de Oxóssi, a Mãe Stella, o santuário de candomblé, localizado no bairro de São Gonçalo, em Salvador (BA), é um dos seis terreiros instalados no País tombados pelo Ministério da Cultura.

Pioneiro na luta pela preservação de valores e identidades das religiões afro-brasileiras, o Ilê Axé Opô Afonjá comemora seus 100 anos de existência tendo no horizonte o sentido de preservação de um dos mais importantes terreiros da nação ketu do Brasil, bem como de respeito e tolerância pelas práticas religiosas de origem africana.

MINISTRO DA CULTURA – A abertura do ciclo de atividades ocorreu  às 19 horas do dia 30 de julho último, quando o presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP), Zulu Araújo, estará representando o ministro da Cultura, Juca Ferreira, que, em virtude da agenda, só poderá participar das comemorações no domingo.

Da programação, consta a inauguração do busto de Mãe Aninha, fundadora e primeira Yalorixá do terreiro,  liderado, ao longo desses 100 anos, por quatro Yalorixás, além de Mãe Stella: Mãe Aninha, Mãe Bada, Mãe Senhora e Mãe Ondina. Integram ainda o rol de atividades, performances de dança, exibição de documentário, palestras e lançamento de publicações, de selo personalizado e carimbo comemorativo, pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT).

100 anos do Candomblé de São Gonçalo: E daí, nasceu o encanto!, título do evento, tem apoio do Ministério da Cultura e é realizado pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Foi idealizado pela Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá, e contou com o apoio da Fundação Cultural Palmares.

Foto Mario Cravo Neto/divulgação

Yalorixá Stella de Oxossi

Mãe Stella

Mãe Stella foi a primeira Yalorixá a publicar livros sobre o Candomblé no Brasil, dentre eles, E daí aconteceu o encanto (de 1988, em co-autoria com sua filha, Cléo Martins) eMeu tempo é agora (de 1993). Em 1999, recebeu a insígnia da Ordem do Mérito Cultural, um reconhecimento do Governo Federal a personalidades, grupos artísticos, iniciativas e instituições que se destacaram pelas contribuições à cultura brasileira.

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Pensando em enumerar os espaços de matriz africana, a Secretaria de Promoção da Igualdade (Sepromi) lança o projeto de Mapeamento dos Espaços de Religião de Matriz Africana. Em parceria com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – (Seppir), o projeto também propõe a categorização dos espaços nos Territórios de Identidade do Recôncavo Baiano e do Baixo Sul.

Iniciado em dezembro de 2009, o projeto de Mapeamento tem como propósito servir de alicerce para elaboração de uma política estadual de desenvolvimento dos espaços de cultos africanos no Estado. Segundo a Coordenadora de Promoção de Defesa dos Direitos, Karine Limeira, o desenvolvimento deste trabalho é importante por identificar as principais demandas das Comunidades Tradicionais pesquisadas. Além disto, este mapeamento disponibiliza para o governo, subsídios para implementação de políticas públicas em prol do desenvolvimento das mesmas, mas especificadamente, as religiões de matriz africana.

O Lançamento do Mapeamento dos Espaços de Religião de Matriz Africana  acontece  dia 21 de janeiro, às 14h, na cidade de Cruz das Almas. Entretanto, outras cidades do Recôncavo, como Varzedo, Cabeceiras do Paraguaçu e São Félix já foram visitadas pelos(as) coordenadores(as) para apresentação da iniciativa aos prefeitos destes municípios. Nesta fase, 33 cidades serão integradas no projeto, o qual é formado por uma equipe de 25 selecionados (as): duas coordenadoras, duas assistentes de coordenação, um mobilizador e 20 estudantes de graduação.
 fonte: Sepromi

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